SU 990 - Mergulho Para a Morte (Relato da Blackbox do Jetsite)

Blackbox do Jetsite

O dia 31 de Outubro parece ser uma data negra na aviação comercial. Nessa data, em 1996, o Fokker 100 da TAM caiu sobre a cidade de São Paulo. Em 31/10/2000, um jumbo da Singapore Airlines acidentou-se em Taipei. E nessa mesma data, no ano de 1999, o vôo 990 da Egyptair desapareceu nas escuras e geladas águas do Oceano Atlântico minutos depois de decolar de Nova York. O que teria acontecido? O mistério somente seria solucionado com a descoberta das caixas pretas, localizadas por robôs-mergulhadores que chegaram até os destroços. O Cockpit Voice Rorder (CVR) e o Flight data Recorder (FDR) foram resgatados 366 metros abaixo do nível médio do mar respectivamente, nos dias 9 e 14 de novembro de 1999. A leitura de seus conteúdos traria revelações surpreendentes.



Voo SU 990 e Acidente da EgyptAir

Na tarde de 30 de outubro, o Boeing 767-300ER de prefixo SU-GAP da Egyptair partiu do Los Angeles International Airport (LAX) com destino à New York, escala intermediária no vôo cujo destino final era o Cairo. Eram 23h48 em Nova York quando o jato tocou na pista do aeroporto Kennedy. Praticamente nessa mesma hora, duas tripulações técnicas completas (dois comandantes e dois primeiro-oficiais), juntamente com mais 10 comissários, apresentaram-se no despacho de operações da empresa no Aeroporto kennedy com a missão de levar o Boeing com segurança até a capital egípcia. Em vôos longos como este JFK-Cairo, é obrigatória a utilização de tripulações de revezamento. O procedimento usual de fluxo de trabalho é o seguinte: a tripulação titular pilota pelas primeiras três ou quatro horas, retornando aos controles somente uma ou duas horas antes do pouso. A tripulacão de revezamento assume a pilotagem no período intermediário do vôo, durante o regime de cruzeiro, enquanto os colegas descansam. Este foi o procedimento combinado para este vôo.

De acordo com os controladores de vôo no aeroporto John Fitzgerald Kennedy em Nova York, eram precisamente 01h01 quando os pilotos de Egypt Air 990 pediram instruções para push-back e acionamento. A noite era agradável, a visibilidade excelente. Não havia muito tráfego nessa hora. Doze minutos depois, o jato iniciou o procedimento de taxi e a 01h17:56, a torre de controle foi contactada pela tripulação, que avisou que o Boeing já estava se aproximando da cabeceira da pista 22R. Autorização para alinhamento e decolagem foram concedidas. Neste momento, entraremos na cabine do Boeing.

CAP: Cmte. Habashi, Comandante do vôo 990
F/O-1: Adel, Primeiro Oficial
F/O-2: Gamil, Primeiro Oficial reserva (de revezamento)
TWR: Torre de Controle de Kennedy

01h19:02 - CAP: Em nome de Alá, o Misericordioso, o piedoso, o cheio de compaixão. Todos prontos?

Em seguida, o Cmte. Habashi alertou pelo alto falante os seus colegas comissários.

01h19:17 - CAP: Tripulação de cabine, assumam a posição de decolagem.

O Cmte. Habashi acelerou gradativamente os manetes. O Boeing 767 rugiu e iniciou sua corrida na clara e fresca madrugada em Nova York.

01h20:30 - CAP: Oitenta nós, cross check.
01h20:40 - F/O-1: V-1.
01h20:41 - F/O-1: Rotate.
01h20:42 - F/O-1: Razão de subida positiva.
01h20:46 - CAP: Trem de pouso!
01h21:06 - F/O-1: Mil pés.
01h21:07 - TWR: EgyptAir 990 Heavy, contate agora controle de saída em 125.7.

Segundos depois, os pilotos entraram em contato com o centro de Terminal Radar Approach and departure Control (TRACON). O TRACON emitiu uma série de instruções para a subida por instrumentos, todas repetidas com clareza. Exatamente a 01h26:04, o vôo foi instruído para subir a 23.000 pés (nível 230) e contactar o New York Air Route Traffic Control Center (ARTCC). A 01h35:52, o ARTCC instruiu o Egypt Air 990 a subir para sua altitude de cruzeiro inicial de 33.000 pés e seguir diretamente para a posição DOVEY.

Na cabine de comando, uma das fases mais trabalhosas do vôo, a operação de subida na congestionada terminal de Nova York, havia passado. Agora, longas horas de pouca atividade esperavam pela tripulação. No silêncio da cabine de commando, a voz de Gamil fica gravada pelo microfone de cabine.

01h40:12 - F/O-2: Porque você não vai descansar lá atrás, Adel? Eu não vou dormir durante o vôo todo. Eu posso ficar aqui por umas duas horas enquanto você descansa.
01h40:18 F/O-1: Ah, mas eu também dormi... eu dormi.
01h40:22 F/O-2: Vá lá para a cabine e descanse um pouco. Vá lá para trás, descanse, e quando você quiser, volte. Venha apenas para a parte final do vôo, ok?
F/O-1: Está bem assim, comandante?
CAP-1: Ok, se vocês preferem assim.

01h40:56, o CVR gravou o som da porta sendo acionada. O comandante Habashi fez um comentário desdenhoso sobre o comportamento de Gamil.

CAP: Você viu? Esse aí faz o que quer, sempre.
F/O-1: E tem dias em que ele simplesmente não trabalha.

A 01h41:51, o CVR gravou o som da porta se abrindo: era Gamil voltando à cabine. O CVR também gravou o som do motor elétrico do assento da direita sendo acionado, qaundo Adel finalmente cedeu sua poltrona a Gamil. Pouco depois, o Flight Data Recorder (FDR) indicou que o Boeing atingiu sua altitude de cruzeiro, exatamente a 01h44:27. A 01h47:19, o ARTCC instruiu o Egypt Air 990 a mudar de freqüência. O comandante do vôo respondeu e mudou, confirmando a nova freqüência a 01h47:39. A 01h47:55, o Primeiro Oficial Gamil disse ao comandante:

F/O-1: Veja, está aqui a caneta do Addul (apelido de Adel). Porque você não vai lá entregar a ele?

Habashi não respondeu. Mas parece ter aceito a sugestão e resolveu ausentar-se da cabine de comando, que ficaria apenas com Gamil nos comandos.

A 01h48:03, Habashi, dirigiu-se a Gamil:

CAP: Olha, assuma aí que vou dar um pulinho no banheiro, enquanto os passageiros jantam, antes que fique lotado.
F/O-2: Como queira, por favor.

A 01h48:18.55, o CVR registrou o som de abertura da porta da cabine, ocupada a partir desse momento apenas por Gamil. Onze segundos depois da porta ser fechada, um comentário ininteligível ficou gravado. Dez segundos depois, por volta das 01h48:40, Gamil comentou num tom de voz baixa, sozinho na cabine, em árabe: F/O-2:"Tawakkalt Ala Allah", que pode ser traduzido como: "Eu confio em Deus."

De acordo com depoimentos colhidos a pilotos egípcios, essa frase é comumente usada no Egito como um pedido de ajuda à Alá, antes da execução de uma trabalho árduo ou particularmente perigoso. Algo como "Que Deus me ajude".

As 01h49:18, o FDR gravou o som de um motor elétrico sendo acionado. Com mais 27 segundos, o piloto automático foi desconectado. Pelos oito segundos seguintes, o 767 foi mantido em vôo nivelado. Então, a 01h49:53, os manetes foram retardados da posição de potência de vôo de cruzeiro e trazidos rápida e totalmente para trás, na posição de ponto morto (idle). A 01h49:54, o FDR registrou um comando de elevadores para a posição de nariz totalmente para baixo, acompanhada de uma leve deflexão dos ailerons internos. O Boeing 767 entrou num súbito e pronunciado mergulho.

Entre 01h49:57 e 01h50:05, a frase "Tawakkalt Ala Allah" foi repetida sete vezes. Entre 01h50:04 e 01h50:05 (10 a 11 segundos depois do acionamento dos elevadores para baixo), o FDR registrou um movimento ainda mais pronunciado na posição de nariz para baixo da linha do horizonte (nose-down). No instante seguinte, o comandante Habashi voltou à cabine de commando. Entrou gritando, assustado:
01h50:05 - CAP: O que está acontecendo, Gamil? O que está acontecendo?

Gamil não respondeu à pergunta. Simplesmente continuou a proferir, no mesmo tom calmo, a mesma frase, pela décima vez repetida na cabine de comando do Boeing 767:

01h50:07 - F/O-2: Tawakkalt Ala Allah.

Pelos 15 segundos seguintes, o FDR registrou inúmeros sons de alerta e a 01h50:08, o alrme de excesso de velocidade soou quando a aeronave ultrapassou a Mach 0.86. Esse alarme continuaria por toda a duração da gravação, indicando que o Boeing mergulhava em alta velocidade. Pela décima primeira vez, Gamil repetiu seu mantra, como se estivesse orando:

01h50:08 - F/O-2: Tawakkalt Ala Allah.

Enquanto isso, o Cmte. Habashi, voltou ao seu assento com dificuldade. Finalmente, ocupou sua posição e amrraou-se aà poltrona da esquerda. Verificando os instrumentos, alarmou-se mais uma vez.

01h50:15 - CAP: O que está acontecendo? O que está acontecendo?

Nesse momento, o Boeing já cruzava 27.300 pés, descendo rapidamente. No entanto, pela primeira vez desde o início do mergulho, o FDR registra que o manche é puxado para trás pela primeira vez desdeo início do mergulho. Sinal de que o comandante Habashi começou a puxar para sí a coluna de controle do Boeing. No entanto, o FDR também registrou que o primeiro oficial Gamil não estava puxando a coluna para tirar o Boeing do mergulho. Ao contrário, Gamil s empurrava cada vez mais fortemente a coluna para a frente. Seis segundos depois, a 01h50:21, o elevador direito voltou a se movimentar numa atitude de mergulho, enquanto o esquerdo continuava na posição de nariz em cima. O comandante puxava, o Primeiro Oficial empurrava, o que explica a discrepância dos comandos aerodinâmicos.

O FDR indicou que os controles de suprimento de combustível ao motores (engine start lever switches) passaram da posição de funcionamento normal para "cutoff" (abastecimento interrompido) entre 01h50:21 e 01h50:23, o que garantiria apenas mais 5 ou 6 segundos de funcionamento aos dois motores Pratt & Whitney. Entre 01h50:24 e 01h50:27, os manetes de potência passaram de ponto morto para a posição de potência maxima. O speedbrake também foi acionado, numa tentative de diminuir a velocidade do mergulho. Durante este período, o CVR gravou o comandante Habashi repetindo diversas vezes a pergunta: "O que é isso? O que é isso? Você desligou os motores?"

A situação na cabine era de total confusão. O comandante estava exasperado. Já o primeiro-oficial, pelo tom mais baixo de sua voz, parecia calmo.

01h50:26 - CAP: Largue os manetes!
01h50:28 - CAP: Feche os manetes!
01h50:29 - F/O-2: Estão fechados.

Entre 01h50:31 e 01h50:37, o comandante repetiu continuamente: "Puxe comigo!" No entanto, o FDR registrou o mesmo padrão de conflito de comando registrado anteriormente: o elevador direito numa atitude de mergulho, o elevador esquerdo na posição oposta, cabrada, de nariz para cima. Habashi tentava elevar o nariz do Boeing; Gamil o empurrava para baixo.

A seguir, tanto o gravador de parâmetros de vôo (FDR) quanto o gravador de sons (CVR) pararam de funcionar, respectivamente a 01h50:36.64 e a 01h50:38.47. Essa interrupção foi causada pelo desligamento dos motores, que alimentam com energia elétrica os sistema de gravação. O que aconteceu com o vôo 990 a partir desse instante foi acompanhado apenas pelos ecos do radar primário de Nantucket, Massachusetts.

O radar indicou que a descida do Boeing foi finalmente interrompida a 01h50:38 e a aeronave conseguiu ganhar altitude e retornar ao nível 250. Então o Boeing alterou seu rumo, deixando a proa 80º para o rumo 140º antes de iniciar uma segunda descida, que continuou até o impacto com a água, a 01h52.

Os 217 ocupantes (10 comissários, quatro pilotos e 203 pasageiros, a maioria norte-americanos) faleceram no impacto junto ao Oceano, 60 milhas a oeste de Nantucket. Entre o início do mergulho e o impacto com a água, transcorreram pouco mais de três minutos. O 767 despencou dos céus, descendo em determinados momentos à razão de 39.000 pés por minuto.

O resultado da leitura das caixas-pretas foi tão supreendente quanto contestado. Para o NTSB, que escreveu o relatório final, a casa provável foi a indução ao mergulho e subsequente perda de controle por "Ações premeditadas do primeiro Oficial de Reserva."

A Egypt Air contesta, veementemente, esse veredito. Para a empresa aérea, a repetição da frase "Tawakkalt Ala Allah," é reflexo das "dificuldades de pilotagem" enfrentadas pelo Primeiro Oficial Gamil, devido à "falhas técnicas" nos comandos do Boeing. Os dados aqui mostrados são contestados para a companhia aérea, que entende que Gamil e os outros 216 ocupantes do Boeing foram "vítimas" de algum problema técnico.

A investigação levou quase dois anos. Centenas de toneladas de parts do Boeing foram retiradas do fundo do mar, e nenhuma evidência de falha técnica, mecânica, foi encontrada. A análise do histórico dos pilotos mostra que o comandante Habashi era um veterano de 57 anos, muito respeitado, com 14.384 horas de vôo e 6.356 no Boeing 767. O Primeiro Oficial Gamil tinha ainda mais experiência: com 59 anos de idade, havia sido instrutor de simulador na Egypt Air, e era tratado como "comandante" por seus colegas, embora de fato não o fosse.

O Boeing 767 tinha 33.354 horas voadas e 7.594 ciclos. Estava configurado com 10 assentos na Primeira Classe, 22 na Executiva e 185 na Classe Econômica. Seu impacto com a água deu-se em alta velocidade, deixando destroços numa área relativamente pequena, o que evidencia que "entrou voando" no leito do Oceano. O que teria levado Gamil a agir de forma suicida é um mistério guardado para sempre pelas águas profundas e geladas do Atlântico Norte.

Fotos do Voo 990 da Egyptair

Desastre da aviação

Aircrash Disaster Flight 990

Relatos de desastres da aviação

Fonte: Este relato foi extraído do extinto site Jetsite, do grande Gianfranco "Panda" Beting, da seção Blackbox, com fins de não se deixar perder o conteúdo daquele fabuloso site, nossa principal fonte de referência no mundo da aviação nos anos 2000. O texto é do Panda, algumas fotos e vídeos colocamos a parte, para contribuir com mais dados e informações.

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